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03/06/2017. Uma antiga lenda local nos conta sobre uma pedra acorrentada no topo da serra. Caso as correntes se quebrem, a pedra rolará do topo até o chão, destruindo a cidade. A responsável por amedrontar gerações de maranguapenses é a Pedra da Rajada. Localizada a 920 metros de altitude, é o terceiro ponto culminante no estado do Ceará. De tão alta, a vista da Rajada abarca toda Fortaleza, estendendo-se até São Gonçalo do Amarante.

 

Às nove da manhã de um sábado, partindo do centro da cidade, nós marchamos em direção à Serra de Maranguape para ir de encontro com a Rajada e suas correntes. Adriano Soares, natural do município e filho de serranos, nos acompanhou por todo o percurso. Falante e expressivo, o guia intercalava uma conversa conosco com cumprimentos aos moradores durante os minutos que caminhamos pela cidade. De prosa em prosa, chegamos ao sopé, o começo de uma viagem para desvendar o que existe da serra pra cima.

No chão, era possível ver alguns copos cheios com um líquido transparente, às vezes amarelado, muito similar à cachaça. Na base, havia pirulitos velhos, grudados na estrutura, cera derretida tanto na base quanto no chão, provavelmente de velas, e a data de construção inscrita em relevo na pedra. Construído em 31 de maio de 1944, o cruzeiro encontra-se conservado e continua sendo utilizado como ponto de oração, e a julgar pela variedade de objetos encontrados, não se restringe a apenas uma religião. Entretanto, o mistério do Cristo sem pernas continua sem solução.

 

Não há mais habitantes ao longo do caminho, só suas casas. Em algumas ainda era possível encontrar pertences, como geladeiras na varanda e um terço pendurado no portão de uma. A estrada ia esverdeando-se cada vez mais, cercada por altos paredões de terra, pedras grandes, cobertas com musgo e plantas, o asfalto já havia sumido por completo. Diversas placas estavam espalhadas pelo caminho, variando entre pedidos para não jogar lixo no chão, propaganda de um retiro religioso localizado em algum ponto da trilha e avisos sobre a área de proteção ambiental que passa pelas três serras da Aratanha.

 

A pré-trilha findou-se na chegada a um grande portão aberto, ao lado do sítio Barlavento, na pousada Encanto da Serra, o último ponto habitado atualmente na Rajada. A enorme escadaria leva em direção à casa com uma extensa varanda coberta de cerâmica portuguesa. No centro, há um pequeno jardim, e bem escondida à esquerda fica a piscina, cuja água utilizada vem direto das cachoeiras existentes na serra. Moreira Júnior toma conta do estabelecimento, pertencente a sua mãe Dona Erundina. Durante a semana, desce para cuidar da outra unidade, localizada na cidade, retornando para serra nos fins de semana. Moreira concordou em falar conosco, desde que não fossem feitas imagens dele e dos hóspedes, porém sua mãe recusou-se. Muito reservado, não revelou muito sobre sua vida ou trabalho, apenas que se preocupa muito em cuidar do meio ambiente serrano, algo que não observa em muitos dos seus hóspedes, o que lhe deixa chateado.

 

Segundo Moreira Júnior, a trilha em direção ao Pico da Rajada possui muito lixo jogado pelos cantos, quem faz a limpeza é ele junto de seus empregados. Sobre os hóspedes, a maioria consiste em famílias que vão para descansar, mas também há um grande fluxo de estudantes que sobem para pesquisar as espécies existentes na serra. A conversa foi curta, mas o nosso grupo demorou-se um pouco nas instalações após 3 horas de caminhada exaustiva. Nos permitimos sentar, conversar, quem sabe até tomar uma cerveja antes de seguir. Devidamente descansados, partimos em direção à última parte da subida: a trilha para a Pedra da Rajada.

Era agosto ou talvez setembro, ali pelos primeiros dias do mês. Era abrir a janela e divisá-la, enorme e seca, arquejando. Cortava o céu com as suas curvas, pedindo arrego. Ia num tom amarelado, qual crina de cavalo mal cuidado, daquelas que se desfazem em poeira quando se escova a contrapelo. Animal sedento, caçando um gole de líquido qualquer que lhe aplacasse a sequidão dos lábios.

 

Assim era a serra naquele setembro causticante, filho da estiagem que já se estendia há seis anos, diziam os jornais. E ver, da janela de casa, a serra rendida de calor... aperta o peito de qualquer indivíduo. Quem mora em cidade serrana estabelece com os morros uma relação outra. Sobretudo porque, em todas as direções para as quais se olhe, ali estão – dividindo o horizonte, delimitando a fronteira terra-céu. Mas não alteram apenas as vistas, quem dera. Mexem com o humor das gentes.

 

Nos dias de secura, como sair de casa? Como olhar no olho da serra? É constrangedor, inquietante, como quando um morador de rua estende a mão, pedindo ajuda, e não se tem para dar. Ou o que se tem não é suficiente. Mas a serra segue ali, soberana, erguida, feito mãe que, em dias de carestia, mente aos filhos sobre a falta do almoço ou da janta. Tira da própria boca para alimentá-los. Uma chuva qualquer e os ipês floram, halos verdes ressurgem nos seios da face da serra-mulher, como se maquiasse a dor.

 

Dizem que o sertanejo é aquele que divide o coração entre o amor pela terra e a precisão – Gonzagão já cantou isso. Quando a seca racha os campos, o homem do sertão debanda para a cidade porque necessita, pelo sustento dos filhos, mas queria mesmo era ficar. Já o serrano é aquele que se orienta pelos morros. Se está em Fortaleza, pelas bandas do litoral, ergue a cabeça e procura a serra no horizonte. “É para lá que eu vou”. Melhor: “É para lá que eu volto”. Quando a rotina na Capital acelera, o sapato aperta, a roupa incomoda, o ônibus esquenta, os muros dos prédios se erguem, o medo impera, a gentileza diz adeus... O serrano consulta a serra-bússola e repete para si: “É para lá que eu volto”.

 

Serrano é esse que assume a silhueta dos morros como um norte, e que se constrange quando as cachoeiras não choram. Mas quando chove... Nossa. Quando chove.

 

Quando chove, não há tecido no mundo que replique aquele verde. Não há traje no mundo que tenha tão ajustado caimento. A serra se arruma para festa, vestido de gala. Imponente, majestosa.

 

Quando chove, as cachoeiras transbordam, qual véu de noiva, arrastando-se serenamente pela nave da igreja. Em tempo de chuva, a serra chora por todos os poros, da queda d’água do Jenipapeiro às Três Bicas, como se libertasse da garganta um pranto de gratidão - daqueles que se chora pelos olhos, pelas mãos, pela boca do estômago.

 

Os paredões que nos rodeiam ensinam sobre o tempo das coisas – na seca, é o do resistir; na chuva, é o de transbordar, partilhar; em tempo de vento, à noite, a brisa desce a ladeira para assobiar nas janelas, ou aparece à alvorada, confundindo os cheiros de cafés das casas – é o de agradecer. Quando chove, a cidade brinca de ser Guaramiranga. Brinca de ser fria, como todo fortalezense acha que ela é. Sim, porque, na Capital, todo serrano ouve sempre o mesmo trio de perguntas:

 

“é frio lá?”

“você vai e volta todo dia?”.

“você mora na serra?”

 

E as respostas, em essência, são as mesmas, afirmativas e negativa: sim, faz frio quando é tempo de vento. Sim, serranos vão e voltam todos os dias, seguindo o rastro do morro. E não, a gente não mora na serra. É ela que(m) mora na gente.

Wilson mora sozinho e é caseiro do sítio da família Jereissati, que já serviu de hospedagem para o ex-presidente Getúlio Vargas, segundo ele.  Mesmo com a solidão e os perigos, os dois gostam muito de Maranguape, sentem que a cidade ainda é um dos poucos lugares tranquilos no mundo, daqueles que a gente pode sentar na calçada e conversar até altas horas. Aqui, a breve conversa se encerrou e seguimos caminho.

 

Alguns metros acima do Boa Vista, onde ainda pode ser ouvida a música, nós encontramos o Seu Luís. O senhor bastante idoso, já nos seus 82 anos, mora sozinho numa propriedade pertencente a um alguém que ele identifica apenas por Doutor Alexandre. Filho de Pacatuba, Seu Luís morou em duas das três serras do Complexo da Aratanha: Pacatuba, e hoje Maranguape. Na segunda, mora há 60 anos, antigamente no alto, mas precisou descer devido a idade e a um problema nos joelhos. Sua única ocupação na vida foi a de caseiro, cuidando das grandes propriedades no caminho da Rajada, função que exerce até hoje no sítio do Doutor Alexandre. Seu Luís também sente falta dos tempos antigos, reclama do perigo e das “marmotas” que aparecem pela trilha, referindo-se à violência crescente na serra.

 

Quando perguntado sobre qual serra ele gostou mais de morar, responde Maranguape sem hesitar, especialmente pelo clima, reclamando que Pacatuba era muito seca mas sua atual morada é mais fresca. O caseiro gosta tanto do clima da Rajada que nos contou sobre uma possível viagem ao sítio da cunhada, mais acima na serra, só para desfrutar melhor do frio. Mais uma vez, nos despedimos e retomamos a trilha, que ia tornando-se gradualmente mais verde à medida que as propriedades iam sumindo, o asfalto também desaparecia sob nossos pés, dando lugar a um caminho de pedras portuguesas bagunçadas no chão duro.

Se nos primeiros 4 quilômetros havia muitos resquícios de urbanização, nos seguintes havia quase nenhum. O cenário mudara drasticamente, mata fechada e árvores altas formavam muralhas ao nosso redor, o chão alternava entre lama, barro escorregadio e pedras grandes, agora o vento soprava mais gelado e um pouco mais forte do que lá embaixo. A vegetação era um misto de caatinga com mata atlântica, com cajazeiras e juazeiros dividindo o mesmo espaço. A trilha da Rajada faz parte da Área de Proteção Ambiental (APA) da Aratanha, uma das duas áreas do Ceará com vegetação pertencente à Mata Atlântica. O clima no alto da serra é muito diferente do clima da cidade, apesar de Maranguape ser uma cidade relativamente fresca. A partir dos 350 metros de altitude, onde começa a surgir mata atlântica, a temperatura média chega à 21 ºC e a mínima pode chegar aos 14ºC, a diferença pode ser sentida logo nos primeiros minutos de caminhada.

 

Por mais alta e fechada que seja a mata, o vento gelado chega por entre as árvores, tornando a caminhada um pouco mais agradável. Mas, infelizmente, é necessário um pouco mais do que brisa fresca para facilitar a caminhada, a trilha começa a alternar entre subidas e descidas sinuosas, com muitas falhas escondidas pela vegetação, levando quem der um passo em falso a cair em pequenos precipícios entre as árvores - essa quem vos escreve, por exemplo, escapou de duas quedas. Por ser tão inacessível, essa área da serra encontra-se quase inalterada pela ação humana, exceto pelo lixo facilmente encontrado no chão, conforme Moreira Júnior havia nos avisado. Com uma sacolinha em mãos, Adriano recolhia todo o lixo possível do chão, deixando perceptível o cuidado e afetividade que ele tem para com a serra. Fora isso, a grande floresta está intocada, não existem residências à vista nem nada que possa ter sido construído por homens.
 

Entretanto, há 1 hora de caminhada do Pico da Rajada, existe uma casinha, a última de toda a serra. O acesso até ela é precário, passamos por um caminho muito estreito com um lado direto num precipício e o esquerdo cheio de urtigas. De pé em pé, chegamos. A casa é pequena, com o chão da área de cimento queimado, portas antigas de madeira - infelizmente trancadas. As paredes verdes estavam desbotando, as telhas e vigas pareciam ser antigas, talvez tão antigas quanto a própria casa. Ao longo do terreno viam-se plantas crescendo de forma descuidada, no telhado cresciam pequenas orquídeas. Acima da porta, alguém escrevera “Ceu Luz i Fco” numa caligrafia tosca, talvez indicando que ali viviam Seu Luiz e Francisco. Adriano nos explicou que, antigamente, um Seu Luiz de fato habitou aquela casa, mas havia descido na década de 80.

Maranguape

O antigo morador trabalhava como agricultor, plantando café, laranja e abacate nos 149 hectares da propriedade. Apesar das plantações estarem abandonadas, ainda é possível ver resquícios da atividade, como algumas mudas de café e um quadrado onde o café era espalhado e posto para secar. Após anos de abandono, Kilder, um amigo de Adriano, comprou a propriedade, instalou água e energia elétrica e abriu as portas para os visitantes, principalmente grupos de biólogos. Atualmente, a casa está fechada por falta de tempo do proprietário para se dedicar à manutenção do local.

 

Após cinco horas ou mais de caminhada, a casa de Seu Luiz foi a nossa última parada. Infelizmente, não foi possível alcançar as correntes da Rajada num tempo hábil que nos permitisse descer antes do anoitecer. Estima-se que nós chegamos próximo aos 900 metros de altitude, andamos 14 quilômetros, somando ida e volta. Iniciamos nossa descida às quatro da tarde, mas só alcançamos o centro de Maranguape às sete da noite, de onde entramos num carro em direção ao nosso “quartel” em Pacatuba.


 

Vale da batalha é a tradução de palavra maragoab, originária do tupi-guarani e antigo nome da Serra de Maranguape.

Trilha da rajada

O vale da batalha

Pré-trilha

O que se chama popularmente de pré-trilha é o trecho entre a Estrada Thomaz Pompeu e a Pousada Recanto da Serra, localizada na metade da serra. Ao todo, são 4 quilômetros de caminhada do sopé até a pousada, alternando entre asfalto e calçamento, com um fluxo médio de veículos durante o dia. À medida que nós avançávamos, as casinhas existentes no lado esquerdo do caminho foram sumindo e a estrada foi ficando mais solitária, até restarem apenas os casarões de um lado e um infinito verde do outro.

Nossa primeira parada foi no Sítio Boa Vista, propriedade com um grande jardim e um corredor de palmeiras que iam do portão até a entrada da casa. Casa essa que, surpreendentemente, não era tão grande, e de onde alguém ouvia música - clássica, supõe-se - que podia ser escutada há vários metros de distância. Na porta do Boa Vista, nós conhecemos Seu Raimundo e Wilson, ou Risadinha, ambos nascidos na serra. Os dois moram no local desde meninos, acompanharam todas as mudanças ao longos 50 anos que vivem em Maranguape. Sentem falta dos dias antigos, de quando podiam subir e descer a serra sem medo de sofrerem alguma violência, mas talvez a maior saudade seja dos companheiros. Quando perguntado sobre os outros habitantes, Seu Raimundo, com um tom saudosista, disse que quase todos desceram, só ficaram alguns “velhos”, como ele chama. “Aqueles antigos, que moram aqui com a gente, continua...só sentindo saudade do tempo velho, antigo, né?”.

O antigo cruzeiro e o encanto da serra

Numa altura não especificada, entre 250 ou 300 metros de altura, nós encontramos o cruzeiro da Serra de Maranguape, conhecido popularmente como Mirante. “O bem frutifica-se no Amor sendo o Perdão seu mais belo fruto”. A frase, pintada na parte superior da entrada - uma espécie de portal branco, nos recebeu na construção. Após adentrar o local, alguns degraus cercados de vegetação levam em direção a uma enorme cruz branca sobre uma base verde-água, já gasta pela passagem do tempo, e Jesus crucificado. Curiosamente, a estátua não tinha pernas. Pelas marcas deixadas na pedra, elas foram quebradas e arrancadas, o que deixou Adriano indignado, pois segundo ele, há poucos meses subira com um grupo para restaurar a estátua.

Trilha

Andressa Gonçalves

A cidade

Sobre as serras que moram na gente

- Mayara de Araújo, jornalista e maranguapense

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