A casa de Maria do Socorro marca o fim da fiação elétrica na serra. Daqui para cima, não há energia nem qualquer indício de implantação. A 20 minutos de andança dali, atravessando o que, possivelmente, já foi uma nascente de água, Francisco Carlos Lopes Braga, o Dine, reside além do último ponto de fiação. Desde o nascimento, há 47 anos, agricultor vive em Aratanha fora do alcance da eletricidade. Aqui também não há água encanada, mas, para esse problema, os moradores encontraram uma solução semelhante ao sistema usado serra abaixo: um encanamento que atravessa o vegetação, encaminhando água desde o topo sob pressão da gravidade.
“Ontem eu desci a tarde, subi a noite. Já fui de manhã hoje, que nem eu cheguei a pouco tempo. Ainda vou descer ainda a tarde, pra subir a noite. Aqui não tem energia, não tem nada. Num tem tempero, num tem uma coisa. Aí tem que descer todo dia pra comprar”, relata, olhar sempre voltado ao chão, descansado sobre um das pedras que circulam e até sustentam sua casa.
Ano a ano, Dine assistiu os demais moradores descerem a serra, incluindo seus próprios filhos. Ficou só, mais a esposa. Pensa em descer, falta apenas a garantia de um serviço com que se sustentar e trilhar um novo caminho. Já o nosso, por ora, é na direção contrária - para cima.
Após ultrapassar pela estrada de calçamento a tradicional Bica das Andreias, balneário público de águas naturais, esbarramos com o portão do Sítio Boa Vista, a indicação mais precisa de que aquela enormidade natural, desde o pé até quase o topo, uma extensão de 166 hectares, na verdade é uma propriedade privada, pertencente à família Costa desde o século XVIII. A utilidade da cancela, no entanto, encerra aí, tendo em vista que, ao lado, fora do calçamento, a passagem é livre.
Guardião da entrada, Raimundo Antônio do Nascimento, o seu Raimundo, vive e trabalha no local há mais de 40 anos. De gestos inquietos, o caseiro nos recebe com desconfiança e reclama do movimento, agora mais frequente, de transeuntes. “Quando eu cheguei aqui era bom. Vinha passando e ‘Ei mah (sic), tu vai pra onde? Vai pro lado de quem?’, ‘Não, vou pedir pra ir lá mas volto já, já’. Mas hoje não, é um senhor dizendo que não pode e [os desconhecidos dizem] ‘Não pode por que?’”, queixa-se o morador.
Sua residência, um casebre amarelo avarandado, se apequena ao lado da mansão do proprietário, trabalhada em madeira e vidro. É o último ponto da subida onde é possível avistar mais de uma construção humana lado a lado.
São poucos minutos que separam o local do acidente da casa da baronesa de Aratanha Maria do Carmo Teófilo e Silva, mãe do escritor e poeta Juvenal Galeno. Ao lado do marido, o barão Antônio Costa e Silva, a aristocrata comandou a próspera plantação de café do local, no século XVIII. A construção, pouco majestosa aos olhos de hoje, recebeu visitas importantes, como a Expedição Científica, mais especificamente a chamada Comissão das Borboletas, que cruzou o Ceará entre 1859 e 1861 em busca de riquezas minerais nunca encontradas. Quanto à visita da Princesa Isabel, não há maiores registros da presença da herdeira.
Não obstante os hóspedes ilustres, a residência era movimentada mesma abaixo do desgastado piso de madeira - ali viviam os escravos que cuidavam dos cafezais do baronato. Hoje, sob o dever do tempo, é possível vislumbrar o ambiente insalubre da senzala por meio de buracos no chão do corredor e até mesmo do quarto dos aristocratas. A casa, de portas baixas e paredes grossas, foi habitada até a década passado por um dos empregados dos atuais donos da propriedade, mas agora está desocupada. A construção, contudo, segue firme sobre a rocha onde foi talhada. Assim como o seu passado.
Apesar de ser um atrativo imperdível na trilha, a Casa da Baronesa é um ponto relativamente destoante do caminho que leva os aventureiros ao tradicional ponto de chegada: o açude Boaçu.
pacatuba
No meio da propriedade se destaca uma construção de tijolos. É o lar de Boneco, que não quis conversar com a equipe. A família - a mesma de Francisco Carlos Lopes Braga, o Dine - mora ali há gerações, e na demarcação da Área de Preservação Ambiental que engloba Pacatuba, Maranguape e Guaiúba, foi-lhes reconhecido o direito ao local. Ao lado da casa, uma tenda onde os visitantes descansam o sol. Do outro lado, banheiros. Ao redor, barracas e pedras ocupadas por aqueles que encararam a trilha para chegar ao açude.
O Boaçu, na verdade, é um pouco diferente dos outros corpos hídricos que levam a denominação que lhe antecede o nome. É que, na concepção etimológica do termo, não pode se tratar de um açude por não ser artificial. Mas também não é lago, nem rio. É uma caverna. O terreno, após insondáveis invernos, inundou e formou a massa d’água hoje conhecida por açude Boaçu. A formação pouco convencional impressiona e também lança um alerta - ao mergulhar em suas águas geladas, não é preciso se afastar muito da borda para perder o chão. O fundo nunca foi encontrado.
A experiência mais surpreendente, no entanto, está a 15 minutos de caminhada dali, subindo. Ao deixar para trás as águas que desde o sopé acompanham o pensamento de quem sobe, é possível chegar até o ponto muito conhecido por seu nome, a Pedra do Perigo, porém, infinitamente mais marcante por sua vista: a miniatura, em tempo real, de Pacatuba, de todos os municípios vizinhos da Região Metropolitana (Itaitinga, Guaiúba, Acarape, Redenção, Horizonte) e de uma infinitude de águas que, em meio à maior estiagem do estado em 100 anos, parecem esconder-se às vistas.
É um lugar onde o olhar alcança a linha do horizonte e permite, a nós, estar à mesma altura das lonjuras onde os pássaros, sempre vistos pela barriga, costumam ficar de cabeça erguida. Apesar de estar à beira de uma queda livre, a pedra, aquela pedra coberta de Mata Atlântica, visível lá de Fortaleza, gigante como o inominável, oferece apenas um perigo maior que os outros: o de apaixonar-se.
Trilha do boaçu
A pedra da paixão
-Leonardo Igor
17/06/2017. Há mais de trezentos anos, cortam-se caminhos entre a mancha verde de Mata Atlântica encravada em pleno Ceará. Faz eco pela serra a estória de que Isabel, a Redentora, cruzou, a cavalo, a Serra de Aratanha, nos idos tempos do Imperador, e veio a se instalar naquela que, dois séculos depois, ficaria conhecida como a Casa da Baronesa. Descabido ou não, o trajeto da princesa imperial só seria possível pelo caminho que, hoje, é atravessado pela porteira marcada pelo tempo e pelas raízes do Sítio Boa Vista.
A verdade é que, agora, não são precisos mais que 10 minutos de caminhada para abandonar a arquitetura colonial de Pacatuba e substituir a terra dos homens pelo domínio da mata. Com ônibus diários ligando o município a outras seis cidades vizinhas, incluindo a Capital do estado, o terminal rodoviário é o ponto de escoamento de quem, assim como nós, trilha o mesmo caminho percorrido por índios pitaguaris, portugueses, escravos, aristocratas e sertanejos - a estrada da serra para cima.
Sítio Boa-Vista
Desde o início, o percurso até a trilha do Boaçu tem ares de outros tempos. O caminho é o mais popular entre os entusiastas das caminhadas pela Serra da Aratanha, e termina no açude que empresta o nome à trilha. É que Pacatuba, segundo consta nos registros da Capitania Real do Siara, foi cedida como sesmaria, ainda no século XVII, para os Correia, família originária do território correspondente ao Rio Grande do Norte. Cerca de 25 anos depois, em 1708, as terras no sopé da serra foram concedidas a novos moradores, responsáveis pela povoação que, hoje, mantém a mesma face de ontem.
O fato é que, apesar de rápido, o caminho oferece desde já uma mostra do que torna a serra de Pacatuba diferente das outras cidades-sede da Área de Preservação Ambiental de Aratanha, os municípios de Guaiúba e Maranguape. Isso porque, ao contrário das vizinhas, o trajeto até a serra é intimamente acompanhado pela ocupação humana, inclusive com vista final para a Praça da Paixão, onde é encenada, desde 1974, a maior Paixão de Cristo do estado.
Trilha do Boaçu
Nos primeiros 20 minutos de caminhada encontra-se uma das poucas casas habitadas que erguem-se na Aratanha. É ali onde vive, há mais de 10 anos, a cozinheira e ex-professora Maria do Socorro Gomes. Encontramos a cozinheira a caminho de casa, voltando do trabalho no Mercado Público de Pacatuba. “Às vezes eu tô lá embaixo e dou graças a Deus subir porque lá embaixo é muita zoada, muito barulho”, confessa.
Dona de uma fala mansa e olhos sorridentes, Help, como era conhecida entre seus conterrâneos em Caucaia, deixou para trás a cidade e estabeleceu família na propriedade. Vive com o marido e um sobrinho. Apesar de estar no local há mais de uma década, não costuma subir muito mais que o necessário para chegar até onde mora. “Eu fui uma vez lá no Boaçu, que eu era louca pra conhecer o açude. Todo mundo falava desse açude e eu era louca pra conhecer. Quando eu fui lá foi a primeira e última vez, nunca mais pisei lá em cima. Porque é alto. É alto e lama, muita lama”, conta aos risos.
Casa da Baronesa
Há muitas pedras na trilha do Boaçu. O caminho é marcado por pedregulhos de tamanhos diversos, desde minérios semelhantes a britas até imponentes rochas duas vezes maiores que um humano comum. A superfície áspera é abraçada pela vegetação da Mata Atlântica, que passa a dominar o cenário a partir dos 300 metros de altura. A passagem, facilitada por anos de exploração, apresenta uma floresta pouco densa, mas que se faz imponente por seu verde e pela dimensão de suas espécies, que, contrapostas às nativas da Caatinga típica do território cearense, exibem seu porte altaneiro e caules grossos.
Entre a casa de Dine e a Casa da Baronesa ficam estacionadas pedras que, comparadas às semelhantes, nasceram há tão pouco tempo que carregam a lisura dos neófitos. É que ali, em 1981, formou-se uma pequena depressão, hoje caminho livre para água corrente das chuvas, em decorrência da queda do voo 168 da VASP, responsável pela morte do empresário Edson Queiroz e outros 136 ocupantes, entre os quais os maiores comerciantes da indústria têxtil do Ceará à época. A natureza, aos poucos, tomou o lugar, inclusive fazendo-se presente nas últimas duas peças do avião que ainda estão no lugar, um pedaço do trem de pouso e outra engrenagem.
Boaçu e a Pedra do Perigo
O primeiro sinal de que chegou ao fim a caminhada até o açude do topo da Aratanha é menos natural e mais humano - uma cerca de metal, erguida a 600 metros de altura, interrompida somente por um portão de ferro, entrelaçado os dois pedaços por uma corrente presa a cadeado. A recepção é rápida, em pouco tempo Boneco, como é conhecido o morador e proprietário do Boaçu, vem ao encontro dos recém-chegados para cobrar o que, convém-se, é seu direito: um pedágio de 5 reais para entrar no terreno.
Antes mesmo de atravessar o portão já é possível admirar a paisagem insólita. No topo da serra, um corpo d’água amarronzado, cercado de palmeiras verde escuro, e, como o caminho pontuado de transeuntes prenunciava, repleto de banhistas. Há muito tempo o Boaçu é conhecido entre montanhistas e similares como um dos campings mais acessíveis do estado, localizado há menos de trinta quilômetros de Fortaleza. Apesar do sol de uma da tarde, a ventania não permite, por um momento sequer, que o calor envolva o corpo.
A cidade
Cidade natal, em outras palavras, significa onde você nasceu? Essa é uma das perguntas que sempre me questionei. Posso responder que nasci em Pacatuba, em vez de Fortaleza? A questão se apoia no velho ditado que diz “mãe é quem cria”. Desta forma, a cidade natal é a que me criou, metaforicamente, sim. Confesso não expor essa explicação em todas as respostas, mas é certo que conscientemente nunca nasci na capital cearense.
Qual o motivo? São vários, e o que parece vergonha passa longe dessa impressão. A identificação com a natureza, é a justificava. O contato diário que a visualização da serra permite, na porta de casa, não se compara ao trânsito infernal de pessoas e veículos. A paixão pela cidade onde fui criado é um amor confirmado na adolescência, momento em que tive o primeiro contato com as trilhas.
A família me levou para passar um fim de semana em um sítio. Desconhecia toda beleza interna que os meus olhos contemplavam de longe. A experiência foi incrível! Pude compreender como a vida era tão calmaria nesse lugar. O tempo e água fria me causaram felicidade plena. Isso se confirmou quando a vida adulta chegou, e conheci Fortaleza.
Quem mora em uma cidade e depende de outra para realizar atividades de trabalho ou estudo, pode concordar comigo. Quando presenciei uma multidão de gente, automóveis, prédios e infinitos lugares de entretenimento, é aqui que eu quero morar, pensei. Engano! Mais tarde a saudade da minha terra acionava a minha falta de sossego. Percebi que por ali eu havia nascido, mas a 30 quilômetros anteriores algo contrariava o meu RG.
Os colegas de trabalho foram os primeiros a se impressionarem com a distância. Já os amigos de faculdade, a intensa curiosidade de saber o que havia de tão bom no meu endereço. A resposta era fácil, até porque surgia a oportunidade de convidar. Vamos conhecer? Pode ser, algum dia, é muito longe, respondiam. Não levei muito tempo conquistar.
As mídias sociais me ajudaram a explicar que sentimento era esse. Através das fotos, a vista panorâmica de uma serra imensa, as águas correntes nas cachoeiras, as piscinas naturais, os açudes, tudo se transformavam likes, reações e comentários nas publicações. A aparência virtual ganhou sentido porque muitos conheceram o meu habitat, detalhe, reconheceram as minhas palavras.
A paz que eu preciso é real, encontrei, e tem feito diferença por onde passei. A Serra da Aratanha é uma confirmação de como a vida é imensa em seus bens imateriais. Antes que eu seja julgado por colocar Fortaleza em segundo plano, afirmo que também gosto do inferno, mas a preferência me destina a um município pequeno, com mais de 80 mil habitantes, entre eles, alguém que faz questão de dizer “eu sou daqui”, de Pacatuba.
Onde você nasceu?
- Darlyson Déles, jornalista, de Pacatuba